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Kaaguy Porã
A minha avó era parteira e seus ensinamentos me marcaram muito. São ensinamentos das mulheres indígenas guarani e principalmente a forma como elas se dedicam em relação a todas as crianças, independente de ser menino ou menina. Por exemplo, no primeiro período menstrual, as meninas começam a olhar para o seu corpo, com mais responsabilidade, com mais cuidado, mas não como mulheres adultas ainda. Elas receberão ajuda das mulheres mais velhas da família através de cuidados específicos.
Neste período de ritual, elas serão colocadas em um espaço determinado, receberão um olhar atencioso, lições para o cuidado com a alimentação, ensinamentos sobre como realizar a higiene e o cultivo de silêncio. Elas aprenderão a trançar coisas minúsculas, fazer colares com pequenas sementes porque este é o momento de olhar para as suas questões, é o momento de fazer o seu próprio ser. As meninas desenvolverão a paciência de estar em silêncio e assim cuidarão do seu próprio corpo. Isso já é o que chamamos de tembiapo. A arte de olhar, de manusear algo, por exemplo, de trançar o Adjaka, que é um cesto, manusear um colar, fazer um colar, trançar algumas tiras para algo específico, atividades estas realizadas em silêncio.
Minha avó chamava isso de escutar a si mesmo. Para ela, sentir essa solidão não era algo ruim. Este isolamento serve para as mulheres saberem lidar consigo mesmas durante o período menstrual. E todas as vezes que esse período menstrual chegar, é importante realizar esta reclusão de cuidados. Minha avó também dizia que se as mulheres não respeitarem este momento de cuidado do corpo, de ficar em silêncio, ao chegar a idade de trinta anos, ela estará debilitada, vulnerável e emocionalmente abalada. Haveria queda de cabelo, esquecimento, teríamos cansaço. Não podemos nos colocar neste movimento extremo. Isso é muito importante.
Já o cuidado dos meninos será no período em que suas vozes começam a se tornar grave, a engrossar, o que os juruás—os homens brancos—chamam de adolescência. Minha avó dizia que os meninos também menstruam e que essa menstruação ocorre todos os dias, recebendo assim o nome de sangue quente. É neste período de tensão que eles irão fazer atividades específicas, mas, diferente das meninas, estas atividades não serão de reclusão e sim de movimento. Eles aprenderão a fazer casas, aprenderão a nadar, a buscar materiais na mata, a roçar, a capinar. Um processo de aprendizado através da movimentação do corpo o tempo todo, sem fazer mal a si.
Contudo, esta movimentação também deve ser feita no silêncio. Eles não podem falar muito, não podem ficar nervosos, eles precisam controlar suas emoções. Eles aprenderão a saber escutar. Nesse período de sangue quente, os meninos precisam levantar cedo antes do sol nascer e tomar banho no rio, lavar o corpo com água fria. As meninas, ao contrário, não podem tomar banho com água gelada no período menstrual, não podem lavar a cabeça com água gelada, não podem sair no vento forte, no frio, também não podem sair no sol quente. Se os meninos não aprenderem a controlar o seu sangue quente, eles podem se tornar homens perigosos, podem se tornar impacientes, podem se tornar agressivos. Desta forma, eu acredito que o cuidado afetivo, o cuidado amoroso, generoso, de delicadeza com os meninos, os ensina a ter paciência e tolerância. Por isso a ocupação do espaço, respeitando as diferenças, compreendendo as especificidades de cada um, com os humanos e não humanos, depende deste reconhecimento de si mesmo, deste entendimento do que cada um representa e dos perigos da falta de controle e da falta de conhecimento de si.
Todas estas questões estão relacionadas ao que chamo de espaço-território, ou seja, a todos os elementos da terra, do chão às árvores, até dos remédios. Logo, estes rituais dependem do rio, da floresta e de todos os demais elementos que necessitamos para produzir nosso conhecimento, o nosso saber. Daquilo que é humano e do não-humano. E, portanto, aquilo que seria necessário ao bem de todos, não apenas ao bem-estar do povo guarani, mas ao bem-estar de toda a sociedade. Essa relação harmoniosa de compreender o humano e o não-humano, compreendendo este movimento de viver junto e respeitando o espaço do outro, nós chamamos de Ka'aguy Porã. Não seria essa a questão principal?
Sobre ser Capturado: Djepota
A ideia de Antropofagia não é algo que compartilhamos no sistema guarani, já que esta é uma ideia dos juruás. Mas eu posso compartilhar o meu pensamento a partir da perspectiva guarani.
Logo, se encantar é muito mais fácil do que se desencantar. Os mais velhos de nossa comunidade guarani reclamam de certa dificuldade de nossos jovens em controlar o uso de tecnologias digitais como a internet, por exemplo. Alguns jovens ficam maravilhados com estas tecnologias e, depois que eles se encantam por estas questões, é muito difícil encontrar um equilíbrio saudável destes usos. Chamamos de Djepota a perda deste controle, se encantar e ser capturado. Então, o que é o cuidado de não ser capturado?
Quando eu saí da aldeia e fui estudar na universidade, eu sempre busquei compreender o que é importante para mim enquanto mulher e enquanto mulher indígena. Ao chegar na universidade eu não busco, a princípio, algo que eu devo aprender ali. Isto é, como se eu fosse procurar o espaço do saber, o espaço do conhecimento e não valorizar o que eu levo. Eu busco compreender do que se trata este espaço, eu escuto para estabelecer um diálogo. Eu procuro não ser capturada de imediato. Ao invés de apenas receber e escutar, eu coloco o que penso. Isso é não ser capturada. Quando há encontro de saberes, encontro de conhecimento, de sabedoria, nós indígenas guarani chamamos de arandu. É quando pegamos aquilo que nos faz bem a todos.
Ao ser funcionária da prefeitura, atuando como professora, por exemplo, houve momentos que tive de deixar de ser guarani. Porque no período menstrual nós devemos descansar, devemos ficar em silêncio. No entanto, eu tinha que trabalhar durante o período menstrual. Veja a situação, eu fui contratada para falar da importância da cultura guarani, do sistema guarani, sobre a necessidade de descanso das meninas e das mulheres quando se está menstruada, do cuidado com a alimentação, de comer algo específico, da importância de falar menos e do silêncio. Contra a minha vontade, eu estava fazendo justamente o oposto daquilo que nós guarani entendemos como saber. O sistema criado pelos juruás me capturou. Eu fui obrigada a seguir este sistema. Eles dizem que há riscos se eu não entrar em acordo, se não fizermos o projeto, que precisamos colocar o conhecimento guarani no currículo escolar. Contudo, mesmo colocando este conhecimento no currículo escolar, eles não compreendem a necessidade de substituir uma professora guarani durante o período menstrual. Este é um exemplo de como podemos ser capturadas despercebidamente.
Essa reflexão se estende para o meu trabalho dentro dos museus como curadora. É um desafio falar destas questões, explicar como é que nós guarani nos organizamos e como podemos materializar este conhecimento nos museus através das exposições. Em como não sermos capturados, ou ao menos como criar estratégias de não captura, já que existe o risco de continuarmos reproduzindo o processo colonial.
Sandra Benites (1975) é natural da etnia Guarani Nhandewa, da aldeia de Porto Lindo, no Mato Grosso do Sul. Professora de Filosofia e História, Mestre em Antropologia Social e atualmente é doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2019, atua como curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo (MASP), sendo a primeira curadora indígena a ser contratada por um museu de arte no Brasil.