The Brooklyn Rail

FEB 2021

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Algodão Doce é Cabelo de Vó

Vestido de jaleco branco, olhos azuis e autoridade o tal Dotô carimbou: Essa teve a avó pega no laço, cabocla selvagem, bugre mesmo. Por sua vez, a tal da avó sempre que podia, ostentava sangue português; preto, nem pensar, a vida lhe havia poupado dessa gota infame. Mas foi por pouco tempo. Pra seu desgosto, o marido tinha a cor de café e um nariz grosso feito panela cansada da lida no fogão a lenha. Pra piorar, o desditoso, com intenções de novo batizo, inventa um nome que acabou matando a pobre coitada no dia do casamento. Aquela qualidade de morte que desobriga velório e enterro. Além disso, dizem, o homem vivia em brasas, o tição sempre aceso obrigando a tal índia pálida a desaguar um rio de leite para alimentar mais de uma dúzia de bocas. Ela olhava incrédula para as próprias crias, só podia ser azar com fartura pois em nada se pareciam com ela. Mas isso nem de longe a entristecia, parecia até uma vingança: Se a mulher que tinha sido, morreu para casar, ela colocou no mundo só gente desembelecida. A pobre ninhada sentiu o ferrão, essas maldades magoam. Cada desafortunado padecia de algum mal: as mulheres de um modo geral, se não tinham os miolos fracos, vieram com uma tal língua ferina que exalava um bafo dos infernos. Os homens por sua vez, tinham os pés virados, condenados a andar pra trás. A título de aperitivo, dizem que só depois de se converter no Alcóolicos Anônimos, é que Tristonho, filho caçula e o mais sortudo da casa, teve uma revelação lá pelas bandas do norte de Minas: Entendeu que era neto de uma Xacriabá. Já o Baboseira, por ser o primogênito, também quis mostrar sua importância, tentando desencavar alguma vantagem do avô Galego. Sem pestanejar entrou no porão do primeiro navio clandestino em busca da milagrosa cidadania portuguesa, sim, ele inventou que queria ser europeu. Depois de muitas pedradas, seu robusto equívoco foi finalmente ferido: todo aquele encardido garrado no couro atrapalhava suas chances de ser branco e português. E assim, sete anos de vida além mar só lhe renderam um sotaque cafajeste e uma deportação. E a palidez da índia mãe era puro deboche do fracasso da empreitada. Apesar do veneno, com o passar dos anos o coração da Velha só crescia. A princípio não era por causa da generosidade, a bem da verdade, a Doença de Chagas foi o começo de tudo. Mas o tempo tem também o poder de caducar o mais calejado fel na alma. Ainda que os netos viessem vestidos com o pretume da noite, a velha não podia evitar: cada vez mais seus bolsos se enchiam de guloseimas e sua cozinha de bolinhos de chuva, biscoito de polvilho, rapadura e alguns conselhos: “Não se gasta palavra a toa; um olhar bem dado, dá rasteira em qualquer desavisado”. E quando eu pedia “vó me conta uma história!”; ela só respondia: “Tem história não, vou te poupar. Agulha só é gostosa quando tira bicho de pé”. E assim, depois de quase meio século crescendo, o coração dela ocupou o peito inteiro. Foi então que ela concluiu: “Já chega. De hoje não passa.”. Nesse dia, quando a filha do miolo mais mole viu que o coração ameaçava forçar saída, arroxeando a palidez de sempre, achou que era o caso de levá-la para o hospital. Engraçado é que apesar da barrigada perdida que colocara no mundo, o tiquitin de cada um pagava um custoso convênio médico. Mas a velha bateu o pé: “Não quero depender de ninguém para morrer! Desse quintal eu não saio.” Ela não queria chororô, apenas precisava escutar o que as mangueiras, o pessegueiro, os cafezais e mesmo as taiobas diriam na despedida. E por fim, parecia ter perdoado a ninhada pela horta escassa, pois um bocadinho mais de folha certamente faria seu passamento mais verdinho. Apesar dos protestos das crias, ela estava tranquila, seu corpo lhe obedecia. Ao final do dia, todo o sangue que envelhecera com ela veio descansar quietinho dentro do seu coração gigante. E quando a última gota finalmente entrou, ela fechou todas as portas do coração, pois já podia morrer. Cerrou os olhos com segurança: Se sangue era mesmo vida, irrigou até a morte o peito toda vida dolorido, dando-lhe enfim, um descanso merecido.


Desde então a saudade me vem na vontade de comer umbigo de bananeira com angu e costela de boi. Passar perto de imenso coração violeta, é de arrepiar e salivar. Me contentava em flertar com ela desse jeito, e até achava muita generosidade da sua parte, considerando que em vida ela me dera também o nome que consta na sua certidão de obituário, aquele mesmo que recebera no dia em que casara com o injustiçado do meu avô, o garimpeiro de pouca sorte. Mas no peito dela vingara bondade de tronco grosso, e hoje ela me veio com esse regalo: “Procê que queria tanto ouvir histórias, te conto essa: O mundo até que era bonito, um lugar decente para se viver. Mas daí nasceu o filho mais horroroso que nenhuma mãe queria assumir, pois era branco demais, homem demais, mais parecia uma assombração. Nada consolava a pobre mãe, que resolveu abandonar a malfadada cria. Peleja daqui, peleja dali, batizaram o tal anjo caído e o bastardim veio a se chamar Capital. Conforme as previsões, cresceu uma criança mal amada e que silenciosamente só aninhava planos de vingança no peito. Mas ninguém lhe dava confiança, ele parecia não ameaçar mesmo, só fazia arrancar risada. O tempo foi passando e o mundo andava meio distraído quando ele então revelou seu poder, pregando a desditosa surpresa: Era um gigante com afiadas habilidades de machucar o planeta inteiro, se alimentando de todo ouro e diamante que a terra gerasse, sangrando seu ventre sem piedade. E mais, derrubando qualquer árvore que cochilasse no seu caminho para saciar sua fome de papel moeda; bebendo todo petróleo dos oceanos para arrotar fogo; fumando léguas de fauna e flora; envenenando rios e mais rios com sua urina infinita; empanturrando o bucho das criaturas de tecnologia, transgênicos e doenças. Sem contento, semeia perpetuamente a guerra, emprestando ao homem branco, (por ser mais parecido com ele), o poder da maldade, e quanto mais fértil melhor, porque crueldade boa é aquela que pari Ismos a torto e à direita. Como se não bastasse, a poluição e a competição engasgam as vistas das pessoas de um jeito que a resistência e o amor ao próximo se tornaram as tarefas mais difíceis da vida. E para piorar, ele picou vontade de poder em toda humanidade, bastando uma migalha reluzente para acordar a ilusão. Se você não for uma pessoa atenta e esperta, corre o risco de sentir crescer na boca os sabores de branco ou de macho.” Arrebatada neste torpor apocalíptico eu encarava a gravidade do par de jabuticabas que era a janela da sua alma. Eu atordoada, via desaparecer o rastro da esperança que saía pela porta. Mas minha vó tirou um chumaço de algodão doce de suas longas e fartas madeixas brancas e me acalmou o paladar. E foi voltando a ser miragem, arrastando com vagar seu pezinho fofo feito pão caseiro recém-saído do forno, rindo como sempre: balançando a pança farta, cantando cascatas de gargalhadas até tossir. Ela ri como quem tosse e tosse como quem ri, debochadamente. Até que a generosidade se reacomodou na sua face cabocla, o braço direito repousou atrás das costas e sua mãozinha esquerda, desde sempre gordinha apontou pra cima: “Mas nem tudo está perdido minha filha, sabendo se fiar em Tupã, cê dá conta de espantar multidões de morcegos da sua cabeça”.



Viviane A. Pistache é mulher negra de Minas Gerais. Atua como roteirista, crítica de cinema e assistente de produção de cinema em espaços como Departamento de Desenvolvimento Artístico da Rede Globo; Casa de Criação de Cinema do diretor Joel Zito e na Agência O2 Filmes. Possui graduação em Psicologia pela UFMG. Atualmente, é doutoranda em Psicologia e Cinema pela USP.

Contributor

Viviane A. Pistache

Viviane A. Pistache (1981) is a Black woman from the state of Minas Gerais. She is a psychologist, a screenwriter, a film critic and a PhD student. Pistache currently works as a researcher for the Department of Artistic Development for the Globo television network. She has previously worked as a development assistant at the production company Casa de Criação Cinema led by director Joel Zito and an assistant in the development of screenplays for O2 Filmes.

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